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Mais uma luz, mais uma sombra

A visão não alcançava o final da sala que ele se encontrava. Parecia que não havia paredes ou elas estavam muito distantes. Apenas havia uma escuridão rodeando um homem sentado em seu banco enquanto um foco de luz iluminava-o.
Não sabia como havia chegado ali e nem o porquê. Apenas sabia que seu corpo era branco. Suas vestes compridas, seu cabelo, seus olhos, sua pele, tudo era branco. Estava com medo, mas não sabia o porquê. Então decidiu descobrir o que estava acontecendo.
Levantou do banco e começou a andar. A luz o acompanhava aonde ia. Parecia que aquilo era um sonho.
Em um ponto distante de seu olhar, encontrou outro foco de luz vindo do além. Desta vez, a luz era vermelha e iluminava alguém ajoelhado no chão. O rapaz rodeou o ser e o observou. Tinha um penteado rosa com uma franja na frente dos olhos e usava um terno num tom semelhante ao seu cabelo porém mais claro. Quando se aproximou, percebeu com um susto que aquele indivíduo era exatamente igual a ele. Viu que ele estava chorando e olhando uma foto borrada por suas lágrimas enquanto segurava uma rosa que já soltara quase todas suas pétalas. Num gesto de consolo encostou sua mão no ombro do pequeno sofredor.
Um instante foi o suficiente para tudo o invadir violentamente. O sentimento passado de paixão, de amor, de entrega. As provas de amor insanas feitas. O sofrimento pela abstinência. As noites mal dormidas. O carinho. O significado de cada detalhe. O sorriso tão importante. O beijo tão esperado e tão apaixonado. A dor pela perda, pela quebra. O desespero. A solidão. O vazio. E, ao mesmo tempo, o copo transbordando.
No instante seguinte, o jovem acorda de um sono que não se lembrava de ter alcançado. Confuso, olha em volta e se vê sozinho mais uma vez. Só que algo está diferente. Através de seu tórax, ele podia ver um chama vermelha que havia alcançado. De algum modo, ele sabia que existia mais daquelas chamas e ele precisava encontrá-las. Ele não sabia como, mas sabia simplesmente. Continuou andando.
Como esperava e, de certa forma, sabia, ele encontrou sua segunda chama. Essa era azul. Sua sombra azul usava uma armadura medieval de batalha da mesma cor que sua pele, cabelo, luz e chama. A sombra segurava uma espada para ferir e um escudo para se isolar dos perigos. Se portava com imponência e altivez, e olhava para o infinito com os olhos levantados.
Num reflexo defensivo correu para segurar o braço que ameaçava puxar a espada e mais uma vez aconteceu.
Um novo sentimento ele conheceu. Segregação, nojo e preconceito eram normais para ele agora. Se sentia autossuficiente, capaz, poderoso. Não pedia ajuda. Tinha medo de precisar dela, mas não demonstrava medo. Não via seu próprio erro, apenas o dos outros. Não sabia perder. Tocava em apenas aquilo que estava em sua altura. Não olhava para baixo, apenas para frente e para cima. Seu olhar perfurava o mármore.
Acordou outra vez sozinho. Mas seu peito trazia mais uma chama: azul. Continuou andando.
Caminhou por bastante tempo. Muito tempo. Mas não se cansava. Caminhava sempre para frente.
Mas algo o fez parar e olhar para trás. Então ele viu.
Sua sombra amarela, se arrastando no chão, vestia trapos bejes. A poeira fazia sua pele já bronzeada ficar mais amarela ainda. Tinha nas mãos um chapéu que prostrava num sinal, sem pudor, de esmola enquanto gemia algo incompreensível e sofrido. Num sinal de pena e misericórdia o rapaz tocou a cabeça do indivíduo como em uma benção. A chama o possuiu.
Sofrimento nunca sentido antes o tomou conta. A invisibilidade. A autoestima baixa. A exclusão. A pouca valorização. O medo extremo. Não sabia mais se valia a pena lutar pelo o que queria ou se deveria apenas desistir. Mas também queria apenas viver. A simplicidade. Não tinha ambições. Era solícito, até demais. A humildade e a humilhação. Era uma faca de dois gumes.
Despertou solitário de novo, mas estava ficando completo a cada encontro. Agora eram três. Precisa continuar.
Andou até encontrar sua quarta sombra. A luz verde era mais forte do que as outras para chamar a atenção. A sombra usava um chapéu de bobo-da-corte com guizos, roupa de palhaço e tinha um copo de vodka na mão. Todos num tom de verde. Enquanto bebia o líquido etílico que mais parecia clorofila, ria e roncava alto com uma voz enrolada de bêbado.
O indivíduo veio andando desengonçado em direção ao rapaz até que tropeçou. Teria quebrado o nariz no chão, se o jovem não tivesse o segurado. O toque foi o suficiente para o homem absorver mais uma chama.
Felicidade e graça o invadiram. Risadas e gargalhadas histéricas encheram sua cabeça. Extroversão e falta de senso eram regra para ele agora. O gosto de álcool estava na sua boca. As piadas, na sua mente. As loucuras, nas suas ações. Alegria se misturava com atitudes idiotas. Comemorações eram convites. Bebidas, desculpas. Atos, ora saudáveis, ora insanos. Um baralho que não sabia quando parar.
Seus olhos se abrem pela quarta vez, mas não captam nada. Estava tudo escuro. Ele levanta às cegas e começar a andar e tatear o nada procurando pela sua quinta e última chama. Mas essa não tinha luz. Ela era negra.
Um grito enche a cabeça do jovem. Ele podia sentir sua sombra rondá-lo. Ele podia sentir o calor da chama negra. Ela era a mais quente de todas.
Mais um berro é solto no espaço seguido de um mergulho invisível em direção ao homem. As mãos da sombra apertam o pescoço do rapaz e o joga para trás fazendo ele cair. O contato com a sombra deveria fazê-lo desmaiar para absorver aquela chama. Mas aquilo era diferente agora. Ela entrou dentro da boca do homem lentamente queimando tudo em seu caminho. O medo era demoníaco e o momento era indescritível. Aquela dor não acabava. Passaram-se dois segundos e ele sentia desejo de se suicidar. Não aguentava. Então o instante passou. Quando todo o sofrimento acabou, ele sentiu o que era para sentir.
Ódio, rancor, raiva. Guerra. Maledicência. Ira. Luta. Socos e chutes ele sentiu enquanto estava desmaiado. Gritos de dor ele ouviu. E a verdadeira raiva ele sentiu. Vingança era sua lei de vida. Brigar sem nenhum motivo aparente. Brasas que se alimentam delas mesmas.
Quando ele acordou, não se lembrava do que havia acontecido e já não estava no mesmo lugar de antes. Estava em sua cama no seu quarto. Ele só conseguia sentir aquelas cinco sensações enquanto olhava para o teto. Pegou o óculos e se sentou na cama. Não sabia explicar porque daquilo porém sentia. Tudo aquilo havia sido um sonho. No entanto, não era falso.
Ele precisava descobrir seus lados. Então encontrou frente a frente com suas sombras, mesmo que subconscientemente. Mesmo que não se lembrou de imediato. Mas a descoberta estava lá. Ele a tinha guardado em algum lugar de sua alma para lembrá-lo em certos momentos que não era puro ou simples, porém humano e complexo.
Ninguém tem uma sombra só. Para achar outras sombras, basta ser iluminado por outras luzes.

Comentários

  1. Olá:)
    Só tenho uma pergunta:
    Qual Chama escreveu esse post?

    Haha ess epost é demais.
    Um abraço
    www.my--bookshelf.blogspot.com

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Foi a chama branca que é a mistura de todas as cores que tem dentro de mim. Obrigado.
      Uma abraço.
      Marcelo Cabral

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